Fundação Muhatu, um refúgio contra a depressão, violência sexual e desesperança
Notícias de Angola – Os abusos sexuais e a depressão destroem vidas. Crescer sem amor corrói por dentro. Ser mulher numa sociedade machista pode matar. São muitas as causas de Tunisia Sebastião, uma das dez mulheres que a Diageo homenageou no Gordon’s Pink Day, a 3 de Março.
Na Fundação Muhatu, a activista abraça todas as dores, sonhos e esperanças. Com carinho, ajuda especializada e orientação profissional, ajuda a salvar vidas.
Por: Edson dos Santos
Antes do Gordon’s Pink Day, já há muito que Tunisia Sebastião era cara conhecida. A consultora das Nações Unidas para a área empresarial é presença assídua nos meios de comunicação. Mas a gala em que a Diageo homenageou a activista e outras nove mulheres angolanas extraordinárias, “revelou um lado que muita gente, inclusivamente da família, não valorizava”: o trabalho intenso à frente da Fundação Muhatu.
“Homenagens como esta fazem-nos ter a consciência de que o nosso trabalho vale a pena”, comenta Tunisia Sebastião, que agradece à Diageo, a maior empresa de bebidas alcoólicas do mundo, distribuída em Angola pela Refriango, pela “preocupação real e sincera para dar a conhecer causas sociais e sensibilizar a sociedade”. “Sozinhos não conseguimos nada, este tem que ser um trabalho colectivo”, realça.
Não é nova, esta “vontade de ajudar os outros”. Na verdade, diz, “é um sentimento que corre nas veias desde pequena e que foi despertando pouco a pouco”. A “primeira acção relevante” aconteceu quando tinha “entre 13 e 15 anos, durante o ensino médio”. “Certa vez, a minha escola visitou o Lar Kuzola, um orfanato para meninas aqui em Luanda. Foi um golpe de realidade que me rasgou o coração. Ainda hoje me lembro perfeitamente da cara de uma dessas crianças quando me pediu para a adoptar”, garante. Depois da visita, mobilizou colegas e professores, “havia que fazer alguma coisa”. “No fim-de-semana seguinte, voltámos ao lar e distribuímos merendas que nós próprios preparámos”.
O dinamismo de Tunisia Sebastião à frente de iniciativas solidárias voltaria a dar nas vistas muito tempo depois, em 2018, ano em que regressou de França, onde estudou Direito Empresarial. Com uma energia que transborda, começou a organizar “conferências femininas” que reuniam mulheres “vítimas de abusos sexuais e depressão” e outras que “procuravam orientação sobre como lidar com as suas vidas ou conselhos para empreender”. A todas dava resposta, direccionando-as para profissionais especializados, como psicólogos, ou oferecendo ela mesma, mentorias em desenvolvimento pessoal e profissional.
A “força deste movimento era imparável”, comenta. “A determinada altura, vimos que nos tínhamos que organizar”. Com “algumas amigas e mulheres que nos acompanharam desde o início”, criou a organização Impact Women. Não foi um nome ao acaso. “Acredito que todo o mundo tem algo em que impactar e que transformações acontecem quando somos impactados”.
No ano passado, a organização foi renomeada para Fundação Muhatu, que “significa Mulher”. Uma potente declaração de intenções.
Agressões sexuais: vítimas e abusadores
Ao adquirir uma nova identidade como Fundação Muhatu, o projecto de Tunisia Sebastião reflectia “vários episódios marcantes” vividos ao longo dos anos. “Começámos a receber casos de crianças vítimas de abuso sexual e isso levou-me a buscar mais causas e a ter contacto com mais crianças, com meninas órfãs e a lidar com situações muito delicadas”.
O apoio às vítimas de violação passou, então, a ser uma prioridade. “A primeira menina abusada sexualmente que chegou até nós, em 2018, trabalha hoje connosco no apoio a outras vítimas. Melhor do que ninguém, sabe como as ajudar”, assegura.
Para reforçar “a consciencialização da sociedade sobre este tema”, este ano a Fundação Muhatu lançará uma “campanha intensiva junto das famílias, igrejas e ministérios” para chegar às “meninas que sofrem agressões sexuais”. Quebrar “a espiral de silêncio” é um dos objectivos. “A maioria destes abusos são contínuos e acontecem dentro de casa ou em círculos próximos. Temos casos de pessoas que são violadas desde os cinco anos e que acabam por normalizar essas agressões, acham natural que determinado indivíduo abuse do seu corpo.” Ao trazer à tona esta realidade, a Fundação Muhatu quer “que as meninas que estiverem a ser abusadas reconheçam a sua realidade ao ver um vídeo nosso.” “É fundamental que ganhem autoconsciência de que são vítimas e saibam que há um número para onde ligar a pedir ajuda para terminar com o ciclo de agressões.”
Mas a Fundação Muhatu quer ir mais a fundo. “Vamos também chegar aos abusadores”, avança Tunisia Sebastião. Na “cultura machista que temos, muitos homens sentem-se donos do corpo das mulheres e há que mudar isso, dizer que não está correcto e alertar para as graves consequências desta mentalidade”. “Muitos abusadores nem imaginam que os seus actos são como matar uma pessoa lentamente” e que, “muitas vezes, isso acaba da pior forma”. Em 2019, “uma das meninas abusadas sexualmente que a Fundação estava a apoiar suicidou-se. É algo que até hoje não consigo superar”.
Esperança e uma tristeza sem fim
São várias as frentes abertas na Fundação Muhatu, “e todas estão interligadas”, explica a activista que, este ano, juntamente com o tema das violações sexuais, definiu a “depressão” como um dos focos de acção da organização. Tunisia Sebastião explica a urgência: “Esta é uma questão gravíssima na nossa sociedade e quase sempre menosprezada. Há pessoas a morrer de depressão e é preciso actuar.”
O problema manifesta-se de diferentes formas, dependendo da origem de quem pede ajuda à Fundação. “As mulheres de classe mais baixa não lhe chamam depressão, mas sim tristeza. Para elas é normal ‘estarem tristes’ porque a vida é difícil, todos os dias. Com estas pessoas trabalhamos essencialmente na consciencialização, motivamo-las a tratar melhor delas mesmas e a reforçar a sua auto-estima”.
Por outro lado, “a depressão como tal manifesta-se sobretudo nas pessoas de classe mais alta, que aparentemente têm tudo mas sofrem estados depressivos importantes”. “São mulheres asfixiadas, pelo factor cultural”, revela Tunisia Sebastião. “Muitas sofrem comportamentos abusivos, físicos e/ou emocionais por parte dos seus esposos, mas sentem que não têm escape, porque culturalmente têm de aguentar o casamento. Ao mesmo tempo, vivem num casulo, totalmente presas às famílias, sem qualquer oportunidade para respirar nem para serem mulheres completas. E sentem-se culpáveis por qualquer pensamento que as faça pensar nelas mesmas como indivíduos”. Ao “exigir que a mulher carregue todos os fardos aos ombros”, continua, “a sociedade não ajuda em nada” a mudar esta “realidade muito perigosa”. “O maior número de casos de suicídio de mulheres no nosso país relaciona-se com estas questões familiares e há que falar sobre isso abertamente”, alerta.
“Tragédias sociais” como esta fizeram Tunisia Sebastião “crescer”, reconhece. Com ela, “madurou também a Fundação Muhatu”. Este ano, para além das campanhas sobre depressão e abuso sexual (“vamos tentar fazer o máximo ruido por todos os meios possíveis”), a organização que já apoiou mais de 3 mil mulheres desde 2018 continuará também a proporcionar capacitação em empreendedorismo a mulheres que queiram criar ou maximizar um negócio.
Entretanto, um dos planos “do coração” para este ano completa um ciclo “importantíssimo para a Fundação”. “Queremos criar um lar nosso para meninas órfãs, que tenha o nosso ADN. Muitas destas crianças dizem que o sonho delas é ter uma mãe, um pai, ter um abraço e serem amadas. No nosso lar, queremos-lhe dar uma atenção que conjugue o lado material, os afectos e a formação como pessoas. Gostaríamos de acolher as meninas com quem já trabalhamos nos orfanatos que apoiamos materialmente, e que já estão muito habituadas a nós”, avança.
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