Fonte: Diário de Notícia
A Primeira parte da grande reportagem do director do Jornal Diário de Notícia, Ferreira Fernandes em Angola.
Esta é a história de dois generais, um do MPLA, outro da UNITA. Um reencontro em que contam um percurso que se confunde com o do país de ambos. Lutaram um contra o outro, hoje são deputados da mesma pátria.
Deputados, eles tinham passado as últimas semanas a debater o Orçamento do Estado. E, certamente, a cumprimentaram-se e a falaram bastante, pois pertencem ambos à poderosa comissão militar e de segurança da Assembleia Nacional angolana. No entanto, quando voltam a encontrar-se, a meu pedido, ao fim de uma tarde em Luanda, fazem entre os dois um banzé de abraços e palmadas nas costas que levam as pessoas a voltar a cabeça. Depois, corpo inclinado quando riem, ficam de mãos dadas.
O pormenor indicia serem militares – os soldados angolanos ganharam ao longo das suas recentes guerras, de independência e civil, esse comovedor e viril hábito de se darem as mãos e prolongarem uma conversa com elas dadas. O negro, general da UNITA, e o mestiço, general do MPLA, assim ficam.
Um dia, há 55 anos, ainda antes da independência, eu prestava não sei que provas para entrar nos últimos anos do liceu, no pavilhão do Salvador Correia, o mítico e belo “maior liceu do Império português”. Eu vinha de um colégio dos maristas, a casa para mim era nova, e estranhei a conversa brincalhona animada por alguém na carteira de trás. Voltei-me e um sorriso de dentes encavalitados encarou-me.
“Este mulato é abusador”, pensei, sem adivinhar que acabava de conhecer um dos amigos da minha vida, da república coimbrã Kimbo dos Sobas, de camaradagem anticolonial, de exílio… Roberto Leal Monteiro, Nini desde sempre, general Ngongo feito na guerrilha do MPLA.
Um dia, há exatos 30 anos, 1988, durante a guerra civil angolana, já eu era jornalista, andei centenas de quilómetros feitos por picadas de areia em camião militar sul-africano, marca Samil, pelas anharas do leste angolano até aos carris abandonados dos Caminhos de Ferro de Benguela (CFB), dividindo o país a meio. Depois, a pé, fiz muitas dezenas de quilómetros a pé subindo por trilhos nas matas, acompanhado por tropas da UNITA, e cruzando colunas de feridos e doentes, vindos de algures, para apanharem boleia, no término dos camiões, até aos hospitais de campanha no sul.
Cruzei-me ainda com mulheres descalças, com sacos de 12 ou 15 quilos de fuba à cabeça; enquanto, no mesmo sentido do meu, subiam mulheres com três bombas de morteiro de 81 mm ou caixas de 750 munições de AK (as célebres Kalashnikov) que haviam trocado a carroçaria do meu Samil por cabeças femininas com um rolo amortecedor feito de pano – em marchas de 25 km diárias… Enfim, entrei numa aldeia perdida em montanha da província de Malanje.
Antes, o capitão Walter, que mudara a farda e engraxara as botas, perguntou-me se eu tinha camisa lavada. Pensei que ele queria agradar à multidão de aldeões que saudava a nossa chegada em berraria e com danças animistas. Mas provavelmente ele queria era impressionar o coronel que nos receberia de camuflado e grosso cinto com um revólver pendurado. Afinal, aquelas colinas eram conhecidas como as terras do “coronel Antonino”, já então uma lenda.
Antonino Filipe Jeremias era adolescente quando participou no ataque à vila de Teixeira de Sousa, hoje Luau, no dia de Natal de 1966, o que anunciou a entrada da UNITA na luta armada. Cinco anos antes, o MPLA escolhera Luanda, a capital, como lugar do levantamento nacional, mostrando à sua elite crioula, assim, que queria um país moderno, “de Cabinda ao Cunene”, fronteiras extremas de todas as províncias, para além de todas etnias.
E agora, ali está, neste fim de tarde, em conversa, um angolano do leste, general e deputado, guerrilheiro e ex-combatente contra o governo, que eu encontrara tantos anos antes, chegando eu como um qualquer Stanley de meia-tigela perante um Livingston,
Nesse mesmo ano de 1961, a UPA-FNLA lançou um levantamento camponês no norte de Angola, onde fora o antigo reino do Congo – o que iria confirmar que o partido que começou por se chamar União dos Povos do Norte de Angola (UPNA) nunca conseguiria ultrapassar a sua influência regional.
No ataque em que participou o miúdo Antonino, em 1966, Jonas Savimbi não esteve e a escolha do lugar foi meramente tática. A UNITA era a emanação do seu líder e a influência dela era na sua região de origem, entre os ovimbundos.
Ora, estes são povos do interior centro, onde a guerrilha dificilmente chegaria e, aliás, nunca chegou durante a guerra de independência. Mas o ataque ao, hoje, Luau demonstrou que a UNITA já então sabia motivar
outros povos, além do seu primacial: “Não havia um só ovimbundo no ataque ao Luau”, contou o general Antonino.