Quem terá a honra e o desafio de substituir Francisco?

Por mais que se repita que é o Espírito Santo quem guia a escolha do sucessor de Francisco, espero sinceramente que esse sopro divino também carregue consciência histórica e sensibilidade política.

Por: Vanderlei Tenório I Jornalista Brasileiro

Tenho acompanhado com atenção — e até com certo fascínio — a cobertura da eleição do novo Papa. Em meio a transmissões em directo, mesas-redondas e programas especiais que mais se assemelham a um boletim eleitoral, há uma pergunta que se repete como um mantra: «Quem é que Vossa Reverendíssima acha que será o novo Papa?» Padres, bispos e cardeais respondem em uníssono, quase como se recitassem um cântico: «O Papa será escolhido pelo Espírito Santo.» A resposta soa automática, pronta, ensaiada — e é. Mas, aqui e ali, surgem vozes como a de Frei Betto, que rompem com o discurso oficial e lembram que, por detrás da fumaça branca, há muita política envolvida.

Afinal, confiar exclusivamente ao Espírito Santo a escolha de um chefe de Estado (porque é disso que também se trata) é, no mínimo, uma forma polianesca de evitar o debate sobre política e poder dentro da Igreja. Tenho, evidentemente, respeito pela fé. A ideia de que uma força divina paira sobre o conclave e guia os cardeais na escolha do sucessor de Pedro é, para muitos, um consolo espiritual. Mas, quando analisada com um mínimo de estratégia ou senso crítico, trata-se de uma abstracção — para não dizer uma alienação — num tom quase singelo de corte interiorano. Uma bela metáfora que encobre disputas territoriais, alianças geopolíticas, egos inflados e interesses bem terrenos. Negar isso é vestir a batina da ignorância voluntária.

E é esse jogo que me inquieta. Não me preocupa a sobrevivência da Igreja — ela já atravessou impérios, guerras e reformas. O que me preocupa é quem virá. Num tempo em que a extrema-direita avança com força sobre corpos, direitos e discursos; num mundo em guerra, anestesiado e polarizado; num cenário em que a diplomacia virou excepção e o radicalismo, regra — é legítimo temer a escolha de alguém que não compreenda a gravidade do trono que herdará. Será esse novo Papa alguém capaz de dialogar com o século XXI — como Francisco tentou, mesmo enfrentando resistências internas? Ou assistiremos a um retrocesso discreto, disfarçado de tradição?

O conclave é um tabuleiro de xadrez revestido de veludo, ouro e simbolismo. E, por mais que se repita que o Espírito Santo guia a decisão, espero sinceramente que esse sopro divino também tenha consciência histórica e sensibilidade política.

Enquanto isso, nós, jornalistas seculares, muitas vezes nos prendemos ao espectáculo da fumaça, dos sinos, da guarda suíça imóvel e dos fiéis emocionados — quase como se fossem parte de um conto dos irmãos Grimm. Esquecemos — ou ignoramos — que há pressões reais em jogo: o lóbi de diferentes alas, as disputas ideológicas, o peso da América Latina — que Trump encara como o seu quintal —, da África — que, nas últimas duas décadas, passou a ser estratégica para a China — e da Ásia nesse processo. Soma- se a isso o crescimento das igrejas pentecostais, a crise das vocações, os escândalos de

abusos sexuais mal resolvidos e o afastamento das gerações mais jovens da religiosidade institucionalizada.

A cobertura mediática raramente toca nas questões centrais: o papel da mulher na Igreja, a discussão sobre o celibato, a abertura à diversidade sexual, o combate às desigualdades sociais. Também se omite a necessidade de a Igreja lidar com temas urgentes, como a emergência climática — na qual o Papa Francisco foi uma das poucas vozes religiosas a posicionar-se com clareza —, a relação com a ciência e o acolhimento de povos indígenas, migrantes e refugiados. Tudo isso deveria estar na pauta do novo pontífice. Mas estará?

O receio é que, diante de tantas forças conservadoras, a Igreja opte por alguém que feche portas em vez de as abrir. Alguém que, em nome de uma tradição rígida, se afaste do mundo e perca a oportunidade de conduzir um rebanho que já não aceita dogmas sem questionamento. Alguém que não veja que a fé precisa dialogar com o conhecimento, com a justiça social, com os desafios do presente — inclusive com a própria ideia de uma espiritualidade mais aberta, comunitária e comprometida com os dramas da humanidade.

Para além da eleição de um líder religioso, o conclave revela também o quanto as instituições de poder resistem à transformação. Numa era de transparência, de democracia participativa, de escuta activa das minorias, a escolha de um Papa ainda se dá sob sigilo, entre muralhas e rituais. Não se trata de banalizar o mistério da fé, mas de reconhecer que o mundo mudou — e a Igreja, se quiser continuar a ser relevante, precisa de acompanhar.

O que está em jogo, afinal, não é apenas o nome do próximo Papa. É o futuro de uma instituição que precisa reinventar-se se quiser continuar a ser farol em tempos tão escuros. Que venha alguém disposto a ouvir. Que, assim como foi Bergoglio, seja humano. Que seja, de facto, um pastor para o nosso tempo — e não apenas o guardião de uma memória que se recusa a ser questionada.

Vanderlei Tenório é jornalista, cronista, poeta e professor de cursos preparatórios para o vestibular. No Brasil, é filiado ao PSOL – Partido Socialismo e Liberdade, exercendo o cargo de vice-presidente do directório municipal de Itapira/SP. Em Portugal, actua como correspondente e editor-adjunto do site Cinema Sétima Arte, além de colaborar com artigos especiais para o Central Comics.

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